Mário Neme nos encanta e nos diverte com o clima de suspense e susto.
HISTÓRIA DE ASSOMBRAÇÃO
Pois não é que eles vinham vindo pela
estrada fria, Nhô Bê e Chico, dois homens. Vinham vindo pelo estradão sem fim,
naquela noite amarga de escura, nem uma estrela no céu, nenhuma claridade, tudo
negro, tudo medonho. Era quase meia-noite e ele vinham vindo, só com o facão na
cintura, voltando pro rancho.
Nisso
estavam chegando perto da casa do defunto Michelangelo, uma tapera abandonada,
que de noite apareciam lá não sei quantas almas do outro mundo. Muita gente já
tinha visto as tais almas cantando, tinha dado tiro nelas, mas a bala não
pegava. Uma tocava viola, uma viola chorosa e bem afinada, mas ninguém via a
viola. Coisa misteriosa. Era mesmo daquelas assombrações que a gente respeita e
passa longe, evita elas, mas Nhô Bê não acreditava “nessas bobagens não”.
-
Isso de assombração é besteira, Chico.
-
Se é, compadre.
-
Pois eu não acredito nisso e acho que é até pecado acreditar. O pessoal lá em
casa é meio besta, acredita, isto é, a mulherada que é meio besta.
-
Em casa também, compadre.
-
Negadinha boba, Chico. Donde se viu?! Eu nunca tive medo dessas invenções.
-
Nem eu, Nhô Bê, nem eu.
Eu
estava orgulhoso de ver dois bravos com essa coragem formidável, isso sim, era
gente pra pôr num conto, até dava gosto lidar com eles. Precisava ver quando,
daí a pouco, desabou uma tempestade de acabar o mundo, daquelas mesmo de lavar
a terra e a gente não se agüentar em pé debaixo dela.
Chuááá,
e a aguaceira caía que não era vida! Então, os dois homens estavam bem pertinho
da casa mal-assombrada, onde tinham matado o defunto Miguelangelo. Foi uma
barbaridade aquela morte, quebraram os dentes dele, quebraram os dedos dos pés
e das mãos e depois deixaram o velho ir morrendo devagarinho, naquele
sofrimento, que só aquilo merecia o céu.
Estavam
mesmo na frente da casa, e a chuva de não se agüentar embaixo. Nhô Bê falou
para o companheiro:
-
Acho que é melhor a gente entrar na casa e esperar passar a chuva, Chico.
-
Mas é que essa casa tem uma fama desgraçada, compadre...
-
O que tem isso, Chico? Pois a gente não tem medo de assombração.
-
Ah! É mesmo, compadre! Então vamos.
E
foram. Entraram sem abrir a porta, porque não tinha porta mais, nem janela.
Mas
entraram com muita precaução, espiaram pra dentro, foram andando de manso,
chegaram no centro da casa, juntaram uns gravetos, e tal, e fizeram fogo.
O
fogo eles disseram, lá entre eles, que era para esquentar o corpo, mas eu
desconfio que era pra espantar as almas do outro mundo. Porque, francamente,
eles não estavam muito firmes, não. Coragem eles tinham e bastante, mas, numa
hora dessas, num lugar assim de má fama, meia-noite, aquela chuva torvando,
aquela casa escangalhada, a gente fica mesmo meio esquerda. Mas eles estavam
ali, firmes.
De
repente, um barulhinho esquisito, que nem gente que pisa disfarçado. Os dois
estavam agachados na frente do foguinho, nessa hora arregalaram os olhos,
ficaram assuntando pro lado do barulho, que era no vão da porta.
Pra
dizer a verdade, estavam com os olhos deste tamanho, olhavam um pro outro e
depois pra porta. Outro barulhinho mais perto e apareceu uma sombra se mexendo
na porta. Nhô Bê puxou a faca da cintura. Chico segurou a “pernambucana” e
ficou pronto pra enfrentar o bicho. Mas, porém, o bicho não era “aquele bicho”.
Era um franguinho. O pobre vinha todo molhado, pingando chuva, querendo
encontrar um cantinho pra se esquentar. Aquilo foi um contentamento pros dois,
um alívio pra eles, até para mim que não tinha nada com o caso. Não é que eles
tivessem medo, mas, numa hora daquelas, aquele barulho na porta, um negócio
assim que vinha agachado pro lado deles, era mesmo pra gente arregalar os olhos
e parar a suspiração.
-
Está vendo, Chico, se a gente tivesse medo podia até morrer de susto agora,
pois é só um franguinho.
-
Pois é, compadre, um franguinho, um franguinho, compadre...
O
franguinho veio vindo, chegou perto do fogo, chacoalhou as asas, esticou o
pescoço pra cima, fez assim uma carinha de gente e falou pros dois com voz de
trovão:
-
PUXA VIDA, COMO ESTÁ CHOVENDO, NÃO?
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